«As nossas vidas são o que os nossos pensamentos fazem delas», Marcus Aurelius Antoninus
A globalização da criminalidade e do terrorismo internacional há muito que coloca aos Estados um desafio que se prende com os fundamentos da soberania: a extradição de cidadãos nacionais para serem julgados por crimes cometidos fora do seu espaço de jurisdição penal. No concerto da nações, Cabo Verde não é – prorque enfrenta de facto este problema – nem pode deixar de ser alheio a à esta discussão; até pelas ambições que demonstra junto da União Europeia e da sua visão das Nações Unidas.
A questão concreta é: deve Cabo Verde extraditar os seus nacionais para serem julgados no exterior? A resposta imediata é, naturalmente, um rotundo não. E é não pela simples razão de que a Constituição da República proíbe a extradição de cidadãos nacionais. Mas então, perguntar-me-ão: (a) o país deve ou deverá continuar a ser um santuário de e para criminosos com nacionalidade caboverdiana? (b) Devemos ou podemos rever a Constituição para resolver esse problema? (c) Ou existe outra solução?
São duas questões substancialmente diferentes, mas que têm uma mesma ratio existencial: existem enquanto normas protectoras dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos caboverdianos em particular e da sociedade caboverdiana em geral. A terceira questão é consequência da resposta às precedentes.
A resposta à primeira questão é tautológica e consensual, pois nenhuma sociedade pode e/ou deseja servir de refúgio e dar guarida voluntária a criminosos, ainda que seus nacionais. Dir-me-ão então que a solução é rever a Constituição, como muitos – partidos politicos inclusive - propoem, de modo a ser possível a extraditação de cidadãos nacionais.
A partida, e numa análise emocional e simplista, parece ser essa a solução adequada – senão necessária em determinda perspectiva – e que se deve trilhar. Mas será mesmo assim?
A Constituição é um conjunto de normas (regras e princípios) hierarquizadas e sustentadas na dignidade da pessoa humana; e a norma em causa, que se pretende alterar – Artº.37º. da Constituição da República de Cabo Verde (CRCV) – encontra-se entre as normas do vértice da pirâmide normativa do Estado e da nação caboverdiana. Brigar com ela é brigar com a ideia de soberania popular e com os direitos, liberdades e garantias dos caboverdianos.
Não é, no entanto, nenhuma «vaca sagrada» insusceptível de ser, mediatamente, alterada e dar corpo ao seu sentido teleológico. Pode não ser directamente alterada, mas pode ser, por via de lei ordinária restritiva - nos termos do Artº.17º., nº.3 da CRCV – dar um sentido prático ao fins
prosseguidos pelo Estado. Leiamos a Constituição (dizia Marcelo Caetano que a lei «deve ser lida, relida e relambida; uma, duas, três vezes...»):
«Artigo 17º. (Âmbito e sentido dos direitos, liberdades e garantias)
1. As leis ou convenções internacionais poderão consagrar direitos, liberdades e garantias não previstos na Constituição.
2. A extensão e o conteúdo essencial das normas constitucionais relativas aos direitos, liberdades e garantias não podem ser restringidos pela via da interpretação.
3. As normas constitucionais e legais relativas aos direitos fundamentais devem ser interpretadas e integradas de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem.
4. Só nos casos expressamente previstos na Constituição poderá a lei restringir os direitos, liberdades e garantias.
5. As leis restritivas dos direitos, liberdades e garantias serão obrigatoriamente de carácter geral e abstracto, não terão efeitos retroactivos, não poderão diminuir a extensão e o conteúdo essencial das normas constitucionais e deverão limitar-se ao necessário para a salvaguarda de outros direitos constitucionalmente protegidos.»
Isto é, tratando-se de direitos fundamentais – em rigor falamos não de «direito» em sentido estricto mas sim da «garantia»constitucional a não ser extraditado -, os critérios para a sua restrição estão aqui enunciados. A questão é: a Constituição caboverdiana admite uma solução dentro destes critérios? A meu ver, sim.
Mas vejamos do que estamos a falar; leiamos a norma em causa (Artigo 37º CRCV):
«1. Não é admitida a extradição de cidadão cabo-verdiano, o qual pode responder perante os tribunais cabo-verdianos pelos crimes cometidos no estrangeiro.
2. É admitida a extradição de estrangeiro ou apátrida, determinada por autoridade judicial cabo-verdiana, nos termos do Direito Internacional e da lei.
3. Não é, porém, admitida a extradição de estrangeiro ou apátrida:
a) Por motivos políticos ou religiosos ou por delito de opinião;
b) Por crimes a que corresponda na lei do Estado requisitante pena de morte, de prisão perpétua ou de lesão irreversível de integridade física;
c) Sempre que, fundadamente, se admita que o extraditando possa vir a ser sujeito a tortura, tratamento desumano, degradante ou cruel.»
Se a Constituição admite, por um lado, a restrição de direitos, liberdades e garantias, condiciona a mesma aos critérios supra referidos, nomeadamente a salvaguarda do «conteúdo essencial» - no plano de uma ponderação dos direitos fundamentais em conflito e de acordo com a concordância prática que indique a melhor solução.
Ao caso, dir-me-ão, não existe nenhuma regra que colida com a garantia constitucional - que o cidadão cabo-verdiano beneficia – de não ser extraditado. Não tem, na verdade, que existir nenhuma regra – basta um interesse imperioso do Estado e da sociedade que tenha de ser cotejado com o direito, liberdade ou garantia fundamental; o que, como veremos – aliás é uma evidência, existe.
Mas, no âmbito do mandado constitucional de optimização dos direitos, liberdades e garantias fundamentais, um facto resulta uma outra evidência: (a) qualquer interpretação que se faça será sempre no sentido de não extradição; (b) mas também não pode ter o efeito perverso e prático que tem no presente que é o de promover a injustiça e a impunidade no seio da comunidade cabo-verdiana.
Mas então, como conjugar estes dois sentidos constitucionais aparentemente antagónicos? Extraditar ou não extraditar? Rever a Constituição ou não rever a Constituição? Esta situação lembra-me o príncipe da Dinamarca, Hamlet, quando – no meio de uma crise política e moral (no Palácio do Plateau e não só, de uma manifesta crise e pobreza franciscana na análise jurídica das questões) - dizia que «algo está pobre no reino da Dinamarca» e, dilemático, verbalizava (Hamlet, III.1., W.Shakespeare):
«To be or not to be, that is the question
—Whether 'tis nobler in the mind to suffer
The slings and arrows of outrageous fortune,
Or to take arms against a sea of troubles,
And by opposing, end them. To die, to sleep
—No more; and by a sleep to say we end
The heart-ache and the thousand natural shocks
That flesh is heir to — 'tis a consummation
Devoutly to be wish'd. To die, to sleep—
To sleep, perchance to dream. Ay, there's the rub,
For in that sleep of death what dreams may come,
When we have shuffled off this mortal coil,
Must give us pause. […]»
A revisão pontual da Constituição, porque extraordinária, deve ser muito bem fundamentada e servir algum desígnio social imperioso da sociedade – ao caso até que poder(á)ia sê-lo, mas esbarra na natureza do direito cujo «conteúdo essencial» a norma constitucional emergente da revisão supriria; indo-se então para além do «necessário» constitucional, em ostensiva violação do Artº.17º., nº.5 da CRCV.
Mas, note-se é que somente por mero exercício intelectual que evento esta possibilidade pois a Constituição proíbe a revisão do Artigo 37º CRCV para restringir a garantia constitucional de não extradição. A Constituição, em letra clara (Artigo 285º, nº.2 CRCV) diz:
[...]
«2. As leis de revisão não podem, ainda, restringir ou limitar os direitos, liberdades e garantias estabelecidos na Constituição.»
É o que em Direito constitucional se chama de «limites materias da revisão constitucional» e que só poderia ser ultrapassado com a chamada «dupla revisão»; ou seja, ter-se-ia que fazer uma revisão desta norma constitucional (Artº.285º, nº.2 CRCV) para depois se poder rever o Artigo 37º da Constituição. Acontece que a Constituição de Cabo Verde não admite a dupla revisão; a não ser em situação de ruptura constitucional.
Ou seja, o problema coloca-se o deve colocar-se a outro nível ou patamar que não o da revisão constitucional. Mas, vamos admitir – em tese –, que tal fosse possível por via de uma maioria tal (eventualmente todos os parlamentares representantes do povo caboverdiano) que assumisse poderes constituintes e levasse à uma ruptura constitucional a imagem do que aconteceu em 1991. Nesse cenário, seria de admitir a revisão constitucional para limitar direitos liberdades e garantias – ao caso a garantia constitucional de não extradição de nacionais? Na verdade, não. Nem mesmo o povo, em quem jaze a soberania nacional, pode se pronunciar sobre isso em referendo (Artigo 102º, nº.3 CRCV); logo, a minori ad maius, se o representado não pode, muito menos podem os seus representantes.
Isto é, propor a revisão constitucional nesta matéria é «malhar em ferro frio» pois não é possível – pelo menos respeitando a República e a Constituição existentes. É de pasmar, verdadeiramente, ver quem tem o dever de conhecer a Constituição – governantes e parlamentares – a discutir o «timming» da revisão constitucional nesta matéria, quando a evidência constitucional é que não pode ser feita.
Mas então, o que fazer? Se não se pode rever a Constituição, como resolver este problema?
A meu ver – como já indiciei –, a solução está exactamente na norma que se pretende rever. Basta ler em leitura clara – mesmo num sentido meramente literal – o enunciado da norma constante do Artigo 37º, nº.1 CRCV e cotejá-lo com nº.4 do Artº.17 da CRCV.
Isto é, (a) cotejando os direitos e interesses legítimos da sociedade cabo-verdiana – nomeadamente ao nível da segurança interna e imagem externa –, (b) dos cidadãos cabo-verdianos que cometam crimes no exterior e (c) realizar a justiça no plano de uma visão universalista dos direitos do homem e da ordem jurídica internacional que enformam a constituição e a ordem jurídica cabo-verdiana é possível encontrar-se uma solução relativamente simples. Simples? Sim, muito simples. Mas já lá chegaremos, melhor, concretizarei.
Como resulta da Constituição, a garantia da não extradição não é uma «garantia de impunidade», daí admitir que o cidadão caboverdiano «[...] pode responder perante os tribunais cabo-verdianos pelos crimes cometidos no estrangeiro» (Artigo 37º CRCV, nº.1, 2ª. parte). A Constituição dá pistas e latitude legiferante ao legislador ordinário, cabe a este encontrar as melhores soluções – respeitando os critérios constitucionais.
Mas como fazer? O que fazer? Voltará a questionar-me.
Para muitos, Cabo Verde, no âmbito da sua aproximação à União Europeia deveria dar um sinal à comunidade internacional e rever a Constituição de que tem a firma vontade de não ser um santuário de criminosos. É de aderir-se à ideia de que se deve dar uma imagem positiva do país e que a situação que se vive em terras da morabeza nessa matéria não é a mais edificante; rever a Constituição é que não é solução – não só por não ser possível mas porque desnecessária e existir melhor solução.
Invoco aqui o poeta João Vário que nos diz que:
«Porque maiores que os desígnios da vida
São os desígnios da medida [...].»
A Constituição, porque construída com base nos valores do Estado de Direito Democrático, tem a solução para este problema que, embora tenha conexões com o Direito Penal Internacional (nalguns casos até do Direito Internacional Penal) é um problema interno do Estado de Cabo Verde. Sendo, em verdade – e segundo a minha perspectiva –, um problema com solução fácil.
A sociedade cabo-verdiana e os valores que a enformam ao nível constitucional procuram um fim justo e adequado aos seus compromissos no quadro de uma comunidade internacional solidária e segura; sendo que, por mandado constituicional, os direitos e deveres fundamentais dos cabo-verdianos devem ser interpretados de acordo com a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 12.10.1948.
Assim sendo, a solução não está somente na norma que proíbe a extradição de cabo-verdianos mas também nas outras normas que concorrem com ela e demandam uma ponderação dos direitos e/ou valores em causa, procurando-se sempre a concordância prática. Deste modo é possível e desejável que se legisle – em sede de lei ordinária – sobre esta matéria com a maior urgência no sentido de se estirpar da sociedade cabo-verdiana esse sentido de impunidade que grassa entre os que procuram «santuário constitucional» no país.
O país deve assumir as suas responsabilidades com a comunidade dos países que respeitam o Estado de Direito Democrático e os seus valores e, sem brigar e/ou ferir a Constituição – mas cumprir com ela! – respeitar os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. Se um criminoso – melhor, uma pessoa que cometa ilícitos penais, não deixa de ser cabo-verdiano; essa sua situação cidadã não pode nem deve transportar o manto da impunidade.
Consequentemente, a solução que propugno é a assunção da competência jurisdicional universal do Estado cabo-verdiano para julgar os seus cidadãos que – em qualquer lugar ou jurisdição – cometam, nomeadamente, crimes contra a paz e a humanidade, crimes graves contra as pessoas, tráfico transnacional de estupefacientes, tráfico de seres humanos e terrorismo. Isso, reitera-se, independentemente do lugar onde o ilícito penal aconteça ou da nacionalidade das vítimas. A Constituição, nos Artºs.165º. e 166º., comete competências à Assembleia Nacional para legislar sobres esta matéria.
A solução ora proposta, salvaguarda a integridade constitucional, reafirma a dimensão soberana do Estado cabo-verdiano – ao nível da imagem externa do país – e representaria um passo em frente na protecção da sociedade cabo-verdiana e dos seus cidadãos. Em meados do passado mês de Abril o Ruanda apresentou no Tribunal Internacional de Justiça, em Haia, um processo contra a França por entender que a França violou os seus «direitos soberanos» no âmbito desta matéria que nos ocupa.
Em linha clara: sempre que um cidadão cabo-verdiano cometer um crime no estrangeiro não teria mais refúgio em Cabo Verde, enquanto espaço de impunidade, pois seria – sublinho seria - julgado por tribunais cabo-verdianos. Falo da assunção de uma protecção universal dos direitos do homem que a jurisdição universal permite – nem será preciso ter-se a visão iluminada de Baltazar Garzón para se aderir à esta lógica de intolerância para com o crime e, simultaneamente, de protecção dos direitos fundamentais da cidadania.
Esclarecendo: o Presidente do MpD, como citado pelo Liberal (30 de Abril, 16:05) diz que “a nossa Constituição prevê o julgamento nos nossos Tribunais de qualquer cidadão, seja ele nacional ou estrangeiro, que tenha cometido crime fora de Cabo Verde” (sic). A Constituição de Cabo Verde, como ficou demonstrado, não prevê nada disso; pois isso é, verdadeiramente, a jurisdição universal... Tão somente prevê a «possibilidade» do «cidadão caboverdiano» poder ser julgado (Artº.37º., nº.1 CRCV) por crime cometido no estrangeiro.
Agora, o estrangeiro que cometa um crime no estrangeiro contra um cidadão cabo-verdiano será julgado em Cabo Verde - se for encontrado no país ou extraditado para ele - de acordo com as regras constantes da legislação penal. Se o crime for contra nacional de outro Estado (um italiano) e fora do espaço de jurisdição de Cabo Verde - sê-lo-ia se fosse a bordo de, v.g., aeronave, navio, representação diplomática - (nos Estados Unidos) o Estado de Cabo Verde não tem jurisdição sobre essa matéria. Para isso é que serve a extradição... Teria de ser enviado para Itália ou Estados Unidos e segundo as regras do Artº.37º. CRCV. A título de exemplo: em caso de um crime de homicídio, o Tribunal de Cabo Verde não enviaria a pessoa para o Estado do Texas – onde há pena de morte, nem para qualquer outro Estado onde exista pena de prisão perpétua. Só poderia expulsar o indivíduo do país – se fosse possível...-, mas não extraditá-lo para o Estado do Texas. Consegue-se perceber, assim, as virtulidades da jurisdição universal.
Ademais, faltaria sempre qualquer coisa: mesmo que a norma (Artº.37º., nº.1 CRCV) fosse mais esclarecedora (é o bastante), não seria exequível por si mesma dada a sua natureza jurídico penal – teria, sempre, de ter uma lei ordinária concretizadora; o que não é, manifestamente, o caso. Na realidade o que proponho é, substancialmente, o que Jorge Santos, Presidente do MpD, pensa que existe na ordem juridico-constitucional caboverdiana; mas não existe!
Cabo Verde pode e deve trilhar o seu caminho; sem ter de, como diz o poeta, ajoelhar ou rezar. Podemos não ter o Céu; mas não precisamos de ter o Inferno ou deixar que o «outro» sofra o mal pela nossa omissão; o que, em realidade penal, é, também, causar o mal.
A questão não será «fazer ou não fazer?» Ao caso fazer uma boa lei, uma lei justa e adequada à(s) nossa(s) realidade(s) – a das ilhas e a da diáspora. Fácil é a solução, fácil dever(á)ia ser a decisão. Como diza Miguel Torga, « [...] ala que se faz tarde. Cada qual para o que nasce».
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